Jacques Chevallier: a governança e o direito

Fichamento do texto “A governança e o direito”, de Jacques Chevallier (Professor na Université Panthéon-Assas – Paris II), publicado na Revista de Direito Público da Economia – RDPE, nº 12, out/dez, 2005.

[ por Rafael A. F. Zanatta ]

 

Para Jacques Chevallier, o discurso da governança se revela em duas vertentes: uma normativa e prescritiva e outra descritiva e analítica. Onipresente no discurso político, o tema da governança tornou-se objeto de uma grande difusão no conjunto das ciências sociais (2005, p. 129). Entretanto, para Chevallier, “a ciência jurídica permanece sendo uma das raras ciências sociais nas quais a noção não tem realmente sido admitida” (p. 130). Apesar dos debates sobre regulação e “direito regulador”, não se tem dado atenção à governança. Para Chevallier, isso merece destaque, pois “a regulação pressupõe a governança, com a qual ela forma uma dupla indissociável” (p. 130).

Nesse texto, Chevallier defende três teses: (i) a governança parece se situar à margem do direito (o que explica a indiferença dos juristas); (ii) a governança tende inevitavelmente a se juridicizar, passando pelo canal do direito; (iii) a governança passa a influir sobre as condições de utilização da técnica jurídica (p. 130).

 

  1. Governança à margem do direito

Na visão de Jacques Chevallier, a governança é guiada por uma racionalidade de ordem política: “trata-se de flexibilizar o estilo da ação pública, trazendo novas categorias de atores para a elaboração de escolhas coletivas” (p. 131). Para Chevallier, a governança se desenvolve aparentemente fora dos procedimentos formais de edição do direito. No entanto, “esse novo estilo de ação pública traz consigo representações e valores diferentes daqueles sobre os quais repousa o modelo jurídico clássico: a governança deixa entrever um outro modo de pilotagem do social, repousando mais sobre a cooperação dos atores do que sobre a unilateralidade” (p. 131). Para Chevallier, a lógica gestionária da eficiência tende a conceber a governança como alternativa ao direito. Trata-se de uma questão de gestão e de racionalidade da ordem política.

Chevallier destaca a diferença de lógicas entre o direito e a governança. Enquanto o direito se exprime no imperativo, sob a forma de comandos obrigatórios provenientes de uma autoridade investida do poder de decisão e segundo as regras fixadas para sua elaboração, a governança provém de uma “abordagem pluralista e interativa da ação coletiva” (p. 131). Segundo o professor, trata-se de obter, pela virtude da troca, compromissos aceitáveis, levando em consideração a complexidade dos problemas e a existência de poderes múltiplos.

Um dos elementos características da governança é a ampliação do círculo de atores associados aos procedimentos decisórios. Paralelamente, há uma procura sistemática de soluções de tipo consensual. Chevallier utiliza uma citação do cientista político Philip Schmitter para explicar que “a governança é um método ou um mecanismo de regulação de uma ampla série de problemas ou conflitos, pelo qual os atores chegam regularmente a decisões mutuamente satisfatórias ou coercitivas, através de negociação e da cooperação”. Ainda segundo Schimitter, “ela se caracteriza por formas horizontais de interação entre atores que possuem interesses contraditórios, mas que são suficientemente independentes uns dos outros para que nenhum deles possam impor uma solução por si só, sendo suficientemente interdependentes para que eles sejam todos perdedores se nenhuma solução for encontrada” (p. 131).

O conceito de governança também tornou-se central nos debates sobre relações internacionais. Para Chevallier, os dispositivos traidicionais, de natureza interestatal, não são mais suficientes. Mecanismos novos tornaram-se indispensáveis. Novos atores (organizações não-governamentais, firmas multinacionais, comunidades de experts…) são presentes nas arbitragens internacionais, “não apenas indiretamente, por intermédio dos Estados com os quais eles guaradam relações permanentes, mas também diretamente, por sua associação aos trabalhos de grupos de reflexão ou de organizações internacionais” (p. 132).

No plano interno, a função de regulação atribuída ao Estado requer a inflexão dos modos de exercício do poder “e a passagem das formas tradicionais do governo aos novos procedimentos da governança” (p. 132). Nesta lógica, segundo Chevallier, “é realmente em se associando aos interessados à definição das regras do jogo que um bom equilíbrio de conjunto poderá ser obtido” (p. 132). A solução de problemas coletivos não é mais de responsabilidade exclusiva do Estado, mas implica a participação dos atores sociais. Assim, a ação pública torna-se “resultante de um processo longo, complexo, sinuoso, do qual múltiplos atores são convidados a participar” (p. 132).

Para Chevallier, a lógica da governança conduz a ir além da associação dos grupos de interesses, ampliando o círculo dos atores envolvidos. Os processos decisionais são abertos à sociedade civil, permitindo a escuta da “voz dos cidadãos no âmbito de uma política deliberativa” (p. 133), ampliando o campo do debate em torno das grandes escolhas coletivas. Entretanto, o desenvolvimento das práticas de governança “se realiza à margem dos procedimentos jurídicos e em outros lugares: o caráter informal dos dispositivos de governança contrasta com o formalismo dos modos de elaboração do direito” (p. 133).

A governança é um novo estilo de ação pública, fixando-se não mais sobre a unilateralidade e a coerção (como no modelo jurídico clássico), mas sobre a cooperação e sobre a adesão que se definem através do tema da govenrança. Para Chevallier, “se esse estilo é incompatível com a permanência das formas jurídicas – muito embora ele esvazie tais formas de uma parte de seu conteúdo -, ele implica uma desvalorização da concepção tradicional do direito” (p. 133). A governança, enfim, deixa entrever um modelo de governo que se distancia da marca do direito. A tese de Chevallier é bastante radical: “O desenvolvimento de práticas de governança revela a insuficiência dos mecanismos jurídicos clássicos para enfrentar os problemas aos quais são confrontadas as sociedades contemporâneas: a racionalidade cooperativa que sustenta tais práticas se situa nas antípodas da concepção tradicional do direito. O modelo de governança aparece, nessa perspectiva, não mais como um simples adjuvante, mas sim como um substituto ao modelo de governo que passa pelo canal do direito e que aposta nas competências da dogmática jurídica” (p. 134).

Para Chevallier, uma dos fatores determinantes para a importância da governança é o aspecto negativo da regulamentação. Ela traz inconvenientes e sua aplicação é dificultada por diversos obstáculos: “por sua uniformidade, ela se adapta mal à diversidade das situações; por sua estabilidade, ela rapidamente se torna obsoleta; por seu aspecto coercitivo, ela suscita reações de passividade e fuga” (p. 135). Na opinião de Chevallier, o Estado procura modelar os comportamentos, preferencialmente pela utilização de meios de influência. Ao invés da coerção, utiliza o convencimento, através do recurso a estímulos diversos.Para ele, a governança faz com que a influência do direito na ação pública seja mais indefinida: “Com efeito, os mecanismos jurídicos são combinados com mecanismos extrajurídicos, segundo um agenciamento complexo; a ideia de comando cede espaço a uma visão nova de um direito prestando-se a formalizar os compromissos negociados no âmbito dos processos de governança” (p. 135).

Se o direito passa a formalizar compromissos gerados no âmbito dos processos de governança, então, para Chevallier, a ideia de uma governança alternativa ao direito é ilusória. A governança age sobre o direito, modificando sua consistência e sua substância: “a governança, não somente precisa de um ambiente institucional para se desenvolver, mas também não pode abrir mão de uma tradução em termos jurídicos. Ela encontra-se na verdade enquistada nos processos jurídicos, dos quais ela é indissociável” (p. 135).

 

  1. A juridização da governança

Para Chevallier, a governança não escapa da influência do direito. Para que essa relação horizontal se desenvolva, é preciso que seja estabelecido um quadro claro de interação, em que sejam definidas certas regras do jogo. Par Chevallier, isso implica um elemento de “exterioridade institucional”, isto é, “a existência de uma instância dotada de recursos necessários para iniciar o processo, selecionar os participantes, conduzir as negociações, fixar as bases de um acordo possível – tal enquadramento supondo necessariamente o recurso ao direito” (p. 135). A governança postula que os compromissos obtidos não possam ser questionados. O produto das negociações deve ser cristalizado, objetivado pelo recurso ao registro jurídico. “Transcrita na linguagem e nas formas do direito, a governança pode, então, vir se implantar nos procedimentos jurídicos clássicos” (p. 136).

Para Chevallier, a procedimentalização da governança procede de um movimento já conhecido: “inicialmente oficiosos e informais, os contatos indispensáveis estabelecidos com os atores sociais tendem irremediavelmente à oficialização e à formalização; enquadrados por regras cada vez mais precisas, eles tornam-se um dos elementos constitutivos do processo formal de tomada de decisões” (p. 136).

A “consulta pública” e a “pesquisa pública” são exemplos desta procedimentalização. Tais instrumentos participativos levam à proliferação de associações permanentes de grupos de interesse, integrando-os no centro do aparelho de Estado. O reflexo jurídico deste fenômeno é uma relação paradoxal entre maleabilidade e formalismo: “se o peso dessa administração consultiva leva a privilegiar os dispositivos mais maleáveis de concertação, esta última tende ela mesma a um formalismo crescente. Assim, a ampliação do número de atores envolvidos (que é inerente à lógica da governança) não é uma coisa nova; e a experiência mostra que ela resulta inevitavelmente em um incremento da complexidade do sistema de decisão formal” (p. 136). Para Chevallier, fica evidente que as formas novas de governança obedecem a essa mesma trajetória de institucionalização, passando pelo canal do direito.

Para Chevallier, além do fenômeno da governança no nível internacional, a formatação da governança em termos jurídicos é ainda mais explícita na ordem interna: “enquanto que os procedimentos clássicos de consulta são suficientemente maleáveis e adaptáveis para permitir a associação permanente de novos grupos de interesse organizados aos processos decisionais – tornando-se assim o lugar privilegiado de exercício de governança -, certos mecanismos jurídicos vêm oficializar a presença de cidadãos” (p. 137). Para Chevallier, o procedimento da pesquisa pública é um dos exemplos claros deste fenômeno, sistematicamente utilizado em todos os casos em que a ação pública tem efeitos individualizáveis e destinatários localizáveis.

Na França, surgiram diversas experiências de instrumentos participativos, de debate público. Essas experiências revelam o fenômeno da procedimentalização da governança. Algumas leis elevaram o momento deliberativo à qualidade de formalidade substancial, integrando-o no processo formal de decisão. Assim, para Chevallier, “a lógica da governança é então progressivamente oficializada nos procedimentos que a transcrevem em termos jurídicos e, dessa forma, asseguram sua conexão aos processos formais de decisão. Ela encontra também uma expressão jurídica específica na técnica contratual”. (p. 138).

Além da procedimentalização, Chevallier atenta para a contratualização, um instrumento privilegiado de formalização da governança. A contratualização “traduz juridicamente a abordagem contratualista e consensual da ação pública – que figura entre os fundamentos da governança” (p. 139). Na síntese de Chevallier, a contratualização “implica relações jurídicas fundadas não mais sobre o unilateralismo e a coerção, mas sobre o acordo de vontades” (p. 139). Se, para ele, a contratualização pressupõe que seja levada em consideração a existência de atores autônomos (dos quais se deve obter cooperação), “ela passa por um processo de negociação visando a definir os contornos de uma ação comum” (p. 139). Esse processo de negociação, na opinião de Chevallier, constitui a lógica que caracteriza a governança.

Para Chevallier, a contratualização é acompanhada de uma inflexão da concepção tradicional de contrato (compreendido como ato sinalagmático, repousando sobre a livre troca de consentimentos e sobre a igualdade de partes). Para o autor, “as fronteiras entre contrato e ato unilateral de um lado, contrato e convenções mais maleáveis de parceria no outro, mostram-se imprecisas na maioria dos casos” (p. 139). Porém, através do desenvolvimento dessas regras públicas negociadas, verifica-se o movimento de juridicização da governança. “A existência de uma moldura contratual tem como efeito assegurar a estabilidade e a perenização do sistema de relações criado entre os diferentes atores envolvidos” (p. 139).

No nível interno, a contratualização aparece como meio de associar, de maneira estável, os diversos parceiros envolvidos com a elaboração e a realização de políticas públicas. “A economia constitui, há muito tempo, o lugar privilegiado de aplicação das técnicas contratuais: com efeito, o Estado se viu coagido a compor com os poderes econômicos privados, esforçando-se para obter sua colaboração para a realização de objetivos de política econômica” (p. 139). O ponto chave, segundo Chevallier, é que a contratualização permite que essas relações se normalizem, identificando os compromissos de cada um. Assim, “os instrumentos contratuais foram progressivamente substituindo as técnicas regulamentadoras clássicas, manifestando a passagem para uma governabilidade cooperativa” (p. 139).

A contratualização, para Chevallier, transborda o domínio econômico e se estende aos diferentes campos de intervenção pública: “para assegurar responsabilidades que lhe foram atribuídas, o Estado regulador deve apoiar-se sobre os atores sociais – e as convenções virão oficializar essa cooperação” (p. 140). Verifica-se que, no nível local, essa é prática é desenvolvida atualmente. As autoridades locais são levadas são levadas a recorrer aos modos de “gestão delegada” e às convenções de parceria, com “as associações tendo se tornado, tanto no domínio econômico como no social ou no cultural, um parceiro indispensável para assegurar a concretização das políticas locais” (p. 140).

Para Chevallier, é possível enxergar uma contratualização vertical (entre Estado e as coletividades locais) e uma vertical (entre unidades administrativas do mesmo nível). Por outro lado, a contratualização também é utilizada como instrumento de diálogo social nos diversos serviços.

A penetração da lógica contratual no centro da esfera pública pode, para Chevallier, gerar diversos tipos de problemas: “o da força jurídica de documentos cuja natureza contratual pode ser colocada em dúvida, o da compatibilidade dessa contratualização com a existência de uma ordem interior administrativa” (p. 140). A aclimatação desta lógica, ao final do trabalho de interpretação jurisprudencial e doutrinal, é reveladora.

Para Chevallier, por trás da aparente desordem dos fenômenos de contratualização, há uma mesma lógica de juridicização da governana: “mesmo se essas diferentes formas de contratualização se empilhem, se encaixem, se entrecruzem – aparentemente na grande desordem -, elas provêm de uma mesma lógica de juridicização da governança, pela qual esta se inscreve nas formas do direito: a técnica contratual aparece como o meio de fazer cooperar os diversos atores, situados tanto no interior como fora do Estado, e dotados de racionalidades divergentes” (p. 140-141). Para Chevallier, o contrato é o meio de formalizar essa cooperação. A lógica da governança, portanto, não fica estranha ao direito, mas influi sobre a própria concepção de direito.

 

  1. O impacto da governança sobre o direito

Para Chevallier, a governança parece se implantar nos mecanismos de produção direito, utilizando técnicas jurídicas de eficácia confirmada. Ela não implica uma separação real do poder de decisão, mas flui nos moldes dos procedimetnos consultivos (o acordo de vontades que ela procura passa ele mesmo pelo vetor contratual clássico). Assim, o surgimento dos procedimentos de governança seria desprovido de impacto sobre a concepção tradicional do direito, com a qual tais procedimentos seriam compatíveis: “os modos políticos de elaboração do direito mudam, mas as formas jurídicas continuariam idênticas” (p. 141). Paul Chevallier relembra Paul Amselek para afirmar que por trás da governança se desenha uma visão diferente da normatividade jurídica, que invoca o duplo surgimento de uma “direção jurídica autônoma” e de uma “direção jurídica não autoritária” das condutas.

Para Chevallier, a persistência das formas jurídicas clássicas não deve iludir: “ela esconde um inflexão substancial na concepção do direito: negociada em sua elaboração, a norma jurídica torna-se flexível em sua aplicação” (p. 141). Para Chevallier, profundamente marcado pela unilateralidade, “o direito apresenta-se classicamente como um ato de autoridade, pelo qual um autor, investido de um poder de comando, impõe certas normas de conduta aos destinários” (p. 141). O argumento de Chevallier busca demonstrar que o desenvolvimento das técnicas de governança mostra que esse “capital de autoridade” não é mais suficiente para dotar o direito de poder normativo necessário. Segundo Chevallier, “a força da regra de direito não provém mais somente do fato de que ela se enuncia como uma ordem obrigatória, à qual todos devem se submeter; ela depende também, e talvez sobretudo, do consenso que a envolve” (p. 141). Esse consenso supõe que os destinatários participem da sua elaboração: “a concertação preliminar, a pariticipação à determinação da norma torna-se a garantia de seu fundamento; o direito torna-se assim um direito negociado, que aparece como o fruto de uma deliberação coletiva” (p. 141-142). A legitimidade intrínseca, fundada sobre a representação do direito como encarnação da razão, cede lugar a uma “representação procedimental” (nos termos de Jürgen Habermas), ligada a seus modos de elaboração. Assim, “a passagem por diferentes lugares de diálogos e fóruns de discussão permitirá que se postule o caráter “racional” do conteúdo da norma. Logo, as práticas de governança não são somente um instrumento que permite que o responsável pela tomada de decisões enriqueça suas fontes de informação ou envolva outros atores num processo decisório que se tornou complexo. Tais práticas obrigam aquele que tomará a decisão a levar em consideração as preferências e as rejeições de seus parceiros” (p. 142).

Par Chevallier, os progressos da governança, seja ela sustentada por um objetivo de eficácia ou por uma preocupação de democratização, tendem assim a relativizar a distinção tradicional entre ato unilateral e contrato, “não somente se passa sem se perceber de um ao outro, numa escalada de continuidade implicando de uma só vez a aparição de categorias híbridas, mas também, e frequentemente, o ato unilateral é tão-somente o invólucro de um verdadeiro acordo negociado” (p. 142). O movimento de contratualização, nesses termos, não se reduz à simples proliferação de contratos, mas subverte a própria forma unilateral. A procura de um melhor equilíbrio entre lei e contrato se inscreve nessa trajetória de evolução: “Com efeito, trata-se de dar aos atores econômicos e sociais uma abordagem nova sobre a produção do direito, colocando o acento sobre a negociação coletiva” (p. 142-143). Para Chevallier, a governança social implica que seja atribuído um peso maior às normas convencionais que às normas estatais.

A lógica da governança afeta o conteúdo da norma e a ideia disseminada por Hans Kelsen de que o elemento essencial do direito é “ser uma ordem de coerção”. A lógica da governança implica o refluxo dos aspectos de coerção e de unilateralidade tradicionalmente ligados ao direito. Ela se funda sobre uma procura sistemática de consenso. Como ressalta Chevallier, “a partir do momento em que a norma jurídica é o produto de negociações e em que seu conteúdo constitui o objeto de um acordo, ela perde toda dimensão coercitiva para os destinatários” (p. 143). A consciência das regras de direito é modificada: os comandos jurídicos tentem a abrir espaços a técnicas mais maleáveis, decorrentes da “direção jurídica não autoritária das condutas” (nos termos de Paul Amselek). Para Chevallier, esse processo leva a uma combinação entre direito e não direito segundo uma aliança variável, na qual um passa imperceptivelmente ao outro, em função de uma “escala de juridicidade cujos contornos são dificilmente discerníveis” (p. 144).

Chevallier entende que a governança traz consigo uma concepção diferente do direito. Com relação a sua esfera de aplicação concreta, duas teses são cabíveis: (i) o “direito de governança” pode ser concebido como resposta a certos problemas específicos e situado à margem do direito clássico; (ii) o direito pode ser concebido como ilustração de uma tendência forte de evolução do direito nas sociedades contemporâneas.

A governança apresenta semelhanças com o direito da regulação. Todavia, a problemática da governança o engloba e o ultrapassa: “ela supõe um modo mais maleável de ação (caracterizado pela flexibilidade), a adequação ao real, a reflexividade; mas ela também se concreta sobre as formas de exercício de poder necessárias para atingir esses objetivos, a saber; a associação dos diferentes atores à definição das escolhas coletivas” (p. 145). Assim, para Chevallier, o “direito de regulação” será pertinente e eficaz na mesma proporção em que ele for o produto da filosofia pluralista e interativa que está no centro da lógica de governança.

Em síntese, a “governança constitui um modelo de exercício do poder de aplicação geral, transponível a todos os níveis e em todas as esferas de organização social” (p. 145). Para Chevallier, a lógica da governança tende a penetrar o conjunto do direito, tanto privado como público: “a ideia de que convém associar os diferentes atores à elaboração da norma e preferir o consenso à coerção é atualmente comumement admitida” (p. 145). Isso não significa, no entanto, que se esteja em presença de uma configuração jurídica radicalmente nova. Para Chevallier, os preceitos já estavam mais ou menos presentes no direito clássico, como demonstra a existência dos procedimentos conultivo e contratual.

A governança não rompe com os cânones da dogmática jurídica, como atesta a perpetuação das formas jurídicas tradicionais: “o direito de governança não deve, portanto, ser percebido como um substituto ao direito clássico: na realidade, a governança associa, segundo modalidades infinitas, hard law, escrito, com efeitos claros, e soft law, móvel, evolutivo” (p. 145). Para Chevallier, a lógica da governança contribui à consolidação dos princípios jurídicos tradicionais. A good governance pregada pelas instituições financeiras internacionais para os países em desenvolvimento implica não o menosprezo aos princípios jurídicos, mas maior atenção às garantias jurídicas, através da intensificação das exigências do Estado de direito: “a boa governança vem, assim, reforçar a ortodoxia jurídica” (p. 145).

Contrariamente às aparências, defende Chevallier, a governança não é estranha ao mundo do direito: “não somente ela tende irresistivelmente a se juridicizar, por intermédio da procedimentalização e da contratualização, mas ainda ela influi sobre a concepção do direito, favorecendo a promoção de um direito negociado e maleável, nas antípodas do direito de comando tradicional” (p. 146). No entanto, alerta o professor, o “direito de governança” não deve ser concebido como um modelo jurídico alternativo: “a governança corre nos moldes do direito vigente – do qual ela modifica somente as condições de elaboração e o alcance normativo – e se apoia sobre a racionalidade jurídica clássica” (p. 146). Com essas ressalvas, alerta Chevallier, é possível esclarecer algumas das transformações do direito nas sociedades contemporâneas.

Peter Hall a ideia de aprendizado social nas políticas públicas

[ Fichamento feito por Rafael A. F. Zanatta ]

O cientista político Peter Hall escreveu em 1993 um influente ensaio sobre policymaking como social learning.[1] Ele retoma a teoria do Estado de Hugh Heclo, para quem a política encontra suas fontes na incerteza (men collectively wondering what to do), para avançar a ideia da formulação de políticas como aprendizado social. Especificamente, Hall está interessado em tentar responder algumas questões centrais: como nós podemos entender a relação entre ideias e formulação de políticas? Como as ideias por trás das políticas mudam de rumo? O processo de aprendizado social é incremental, como espera a teoria organizacional, ou caracterizada por mudanças e um “punctuated equilibrium”, como ocorre em mudanças políticas? Os burocratas são os principais atores no aprendizado social, ou políticos e organizações sociais também possuem um papel?

Hall contesta a visão de aprendizado social em um Estado autônomo: “o aprendizado social tem sido geralmente tratado como uma dimensão da formulação de políticas que confirma a autonomia do Estado, mas ele também pode ser um processo intimamente afetado pelos desenvolvimentos sociais ao invés de algo que acontece dentro do Estado” (1993, p. 276).

Para Hall, existe uma divisão central nas análises contemporâneas sobre o Estado. Uma vertente, chamada de state-centric, enfatiza a autonomia do Estado das pressões sociais. Para essa literatura, as políticas são elaboradas por oficiais públicos que operam com independência considerável de organizações, partidos e grupos de interesse. Do outro lado, está uma teoria chamada state-structural. Eles reconhecem o impacto da política na “estrutural estatal e suas ações”, mas “estão menos inclinados a insistir na autonomia do Estado vis-à-vis a pressão social” (1993, p. 276). Tal divisão tem efeitos para a teoria do aprendizado social: se o aprendizado ocorreu dentro do Estado, está alinhado com a state-centric; se ocorre com participação e conflito dentro do sistema político como um todo, está consonante com a abordagem state-structuralist.

De acordo com Hall, o modelo de “aprendizado social” dominante na ciência política no início da década de 1990 tinha três características básicas: (i) o principal fator que afeta a política em tempo-1 é o tempo-0 (a política é muito influenciada pelo legado anterior); (ii) os agentes centrais que avançam processos de aprendizado são experts em um campo específico de políticas, trabalhando para o Estado ou aconselhando a partir de uma posição privilegiada (“enclaves intelectuais da sociedade”); (iii) “a visão de aprendizado social enfatiza a capacidade do Estado de agir de forma autônoma das pressões sociais” (1993, p. 278).

Hall entende que a ideia de “processos de aprendizado” pode ter várias formas. O próprio conceito de “aprendizado social” pode ser desagregado. Assim, o policymaking pode ser pensado como um processo que envolve três variáveis: “os objetivos amplos que guiam a política em um campo particular, as técnicas ou instrumentos utilizados para atingir esses objetivos, e os arranjos precisos desses instrumentos” (1993, p. 278).

Ao estudar as mudanças nas políticas macroeconômicas no Reino Unido entre  1970-1989, Peter Hall propõe uma tipologia para entender os diferentes tipos de mudança. A process of first order change ocorre quando os “arranjos instrumentais são modificados à luz da experiência e novo conhecimento, enquanto os objetivos amplos da política permanecem  os mesmos” (p. 278).  A process of second order change ocorre quando “os instrumentos da política, bem como seus arranjos são alterados em resposta a experiências passadas, apesar de manter os objetivos da política” (p. 278). Por fim, a process of third  order change ocorre ao “mudar simultaneamente os três componentes da política: os arranjos instrumentais, os instrumentos da política e os objetivos amplos por trás” (p. 278).

Outra contribuição de Hall é elaborar o conceito de “paradigma de política” (policy paradigm). Com isso, Hall quer explicar “o quadro geral de ideias e padrões que especificam não somente os objetivos das políticas e os instrumentos que podem ser utilizados, mas também a própria natureza dos problemas que devem ser resolvidos” (p. 279).

Hall retoma a ideia de Thomas Kuhn de “revoluções paradigmáticas” para explicar o papel do aprendizado social nas mudanças nas políticas. Em explícita referência a Kuhn, Hall explica que as mudanças de “primeira e segunda ordem” podem ser vistas como casos de “normal policymaking”, ou seja, de processos que ajustam as políticas sem mudar os termos gerais do paradigma de política. As “mudanças de terceira ordem”, todavia, “refletem um processo diferente, caracterizado por mudanças radicais nos termos gerais do discurso da política associado com uma mudança de paradigma” (p. 279). Enquanto as mudanças de primeira e segunda ordem são incrementais, as de terceira são revolucionárias.[2]

Hall analisa diferentes mudanças na política macroeconômica inglesa (1970-1989) e as classifica como mudanças de primeira, segunda e terceira ordem. Ele reconhece que as premissas de “aprendizado social” da ciência política se aplicam às mudanças de primeira e segunda ordem: de fato, elas ocorrem dentro do Estado, são conduzidas por experts e baseiam-se na experiência de políticas anteriores. Entretanto, o abandono de uma política keynesiana para uma política monetarista no governo Thatcher representa algo maior: trata-se de uma mudança em todos os elementos da política monetária.[3] É diante desta mudança, que Hall defende que “nós precisamos de uma moldura conceitual para entender o processo pelo qual a política macroeconômica britânica mudou entre 1970 e 1980” (p. 284).

Para Hall, a ascensão de Thatcher e as transformações da política macroeconômica foram legítimas “mudanças de terceira ordem”. A política mudou integralmente: objetivos, instrumentos e arranjos. A mudança foi motivada por uma plataforma política[4] e intensos debates públicos provocados pela incapacidade do paradigma keynesiano de solucionar problemas existentes (anomalias). A batalha para “modificar um paradigma de política por outro foi um assunto de toda a sociedade, mediada pela imprensa, profundamente imbricado com a competição eleitoral, e lutado na arena pública” (p. 287).

Hall acredita que sua contribuição tem importantes implicações para a teoria do Estado, pois desagrega os processos de mudanças de políticas em três subtipos, de acordo com a magnitude das mudanças envolvidas. Além disso, propõe a ideia de policy paradigms, mapas conceituais que solucionam problemas sem o questionamento de suas premissas – tal como elaborado por Thomas Kuhn.

A mudança da política macroeconômica (de keynesiana para monetarista) contesta a teoria do “aprendizado social” como um processo dentro do Estado. Os debates aconteceram na esfera pública e foram motivados por lideranças políticas. Além disso, o caso estudado por Hall mostra que a relação “Estado-sociedade” não é medida somente por grupos de interesse e partidos políticos. A mídia, o mercado financeiro e os centros de pesquisa tiveram um papel muito influente na definição da política.

A conclusão de Hall é que a competição pelo poder pode ser um veículo de aprendizado social. A contribuição da perspectiva do aprendizado social é chamar nossa atenção para o papel das ideias na política:

The important point here is that “powering” and “puzzling” often go together. Both are dimensions of the process whereby policy changes, especially in democratic polities, whose institutions tend to combine the two endeavours. Politicians compete for office precisely by  propounding new solutions to collective problems which appeal to the electorate. Officials advance their own fortunes within the bureaucracy partly by devising new approaches to old dilemmas. The institutional arrangements designed to marry the public interest to private interest in a democracy rarely work perfectly, but they do operate so as to militate against a rigid distinction between power-based and ideas-based models of politics. The competitions for power can itself be a vehicle of social learning (Hall, 1993, p. 289).

Uma segunda conclusão é que a ideia de “policy paradigm” pode ajudar a entender a relação entre pressão social e mudanças no Estado. Para Hall, “formuladores de política ficam em uma posição mais forte para resistir pressões de interesses sociais quando estão armados com um paradigma de política coerente”  (p. 290).

Hall propõe superar ideias contrastantes da “política como aprendizado social” e “política como luta pelo poder”. Ideias e poder andam juntas e constituem as políticas.  O que  precisamos é de uma análise das políticas públicas ao longo do tempo – e não uma fotografia estática.

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[1] “Learning is conventionally said to occur when individuals assimilate new information, including that based on past experience, and apply it to their subsequent actions. Therefore, we can define social learning as a deliberate attempt to adjust the goals or techniques of policy in response to past experience and new information. Learning is indicated when policy changes as the result of such process” (Hall, 1993, p. 278).

[2] “The movement from one paradigm to another that characterizes third order change is likely to involve the accumulation of anomalies, experimentation with new forms of policy, and policy failures that precipitate a shift in the locus of authority over policy and initiate a wider contest between competing paradigms. This contest may well spill beyond the boundaries of the state itself into the broader political arena. It well end only when the supporters of a new paradigm secure positions of authority over policymaking and are able to rearrange the organization and standard operating  procedures of the policy process so as to institutionalize the new paradigm” (Hall, 1993, p. 281).

[3] “When monetarism replaced Keynesianism as the template guiding policy, there was a radical shift in the hierarchy of goals guiding policy, the instruments relied on to effect policy, and the settings of those instruments. Moreover, these changes were accompanied by substantial changes in the discourse employed by policymakers and in the analysis of the economy on which policy was based” (Hall, 1993, p. 284).

[4] “Monetarism had political  appeal, first, because it provided a coherent challenge to the policies of the Labour government, and especially those on the right wing of the party, because it provided a new rationale for many measusres which they had long supported. The monetarist critique of fiscal activism contained a new set of arguments for the long-standing Conservative  position that public spending and the role of the state in the economy should be reduced. The monetarist ideia that the “natural rate” of unemployment could be decreased only by reducing the power of the trade unions also fit well with the Conservatives’ growing antipathy towards the unions”. (Hall, 1993, p. 286).

Fukuyama e a proposta de definição de governança

No recente ensaio What is Governance?, Francis Fukuyama adota uma definição restrita de governança para entender a habilidade de um governo em implementar políticas.

O conceito de governança adotado pelo cientista político é ” [a] government’s ability to make and enforce rules, and to deliver services, regardless of whether that government is democratic or not“.

A proposta de Fukuyama é encontrar alguma forma de mensuração de governos que possuem um bom grau de autonomia para implementação de políticas de forma descentralizada e alta capacidade de execução de políticas, que tendem à hierarquização e uso tradicional da autoridade estatal.

fukuyama

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